Victor da Rosa, 2006.
Roland Barthes, em seu curso “Como viver junto”;, fala das flores como figuração de um toque poético que se volta para dentro – pulsão que contém traços de uma delicadeza frágil, perecível. As flores morrem em pouco tempo, e estão fadadas a um desaparecimento que, quase sempre, sequer, é percebido. Talvez por isso, por viverem no constante limite entre vida e morte, próximas sempre do falecimento, essas flores vivem com a intensidade de suas cores, a potência de suas pétalas. Essas flores vivem em segredo.
A artista plástica Letícia Cardoso, com seu objeto “Primavera, realiza um gesto, faz uma aposta: alonga a vida dessas flores, adia seus falecimentos. A artista captura pétalas do chão, caídas, quase perdidas para o tempo, destinadas à destruição – e aprisiona todas num cubo de gelo grande, oferecendo a elas, ainda, um sopro de vida. Um movimento para as flores.
Letícia parece realizar um movimento mesmo de olhar para o evidente, e percebê- lo – escutá-lo. Barthes:Ora, quando a coisa é óbvia, é então que se deve atentar para ela (..);. Trata-se de um recorte daquilo que não mais é visto, e que perde sua vida justamente porque permanece abandonado aos excessos do mundo. A partir do momento em que a artista retira uma pétala da rua, do mundo, e devolve precisão a essa pétala, enfatizando sua existência, sua cor desbotada que retorna com a água, a artista devolve também sua potência, e poesia. Ou, somente, uma proteção da delicadeza que resta – as pétalas no gelo, protegidas contra o tempo. As pétalas funcionam como metonímia de uma primavera extraviada. Trata-se, portanto, não somente de um alongamento da vida dessas flores, mas de uma recuperação da primavera, sua poeticidade – um elogio da estação. Ou um momento para as flores, para a primavera.
Quando o objeto é exposto, porém, o processo é inverso. Se a clausura das pétalas funciona como proteção, pode também, se permanente, funcionar como opressão. É nesse momento, portanto, que as flores devem ser abandonadas, e jogadas, mais uma vez, às vontades do tempo. O cubo de gelo vai à exposição, entregue ao acaso, e o calor o absorve. Outro movimento para as flores. A dureza do gelo cede, se desmancha, e dá lugar às pétalas. O gelo, após uma espera, deixa de ser pedra – e perde todo seu peso para uma leveza líquida: passa a ser água, e depois desaparece. É mesmo a experiência da espera que o objeto sugere, e requer daquele que o vê – um tempo para revelar-se, e para revelar a primavera. E um tempo para desaparecer. Na medida em que o gelo vai derretendo, as pétalas se dão a ver, recuperam o extremo de sua vida – e derramada pelo chão, a água carrega as pétalas numa conquista do espaço. Aqui o objeto não interrompe, permanece sempre em atividade, afetando o leitor com a fragilidade de seu deslocamento, num toque. Como nas condições de primavera, tudo muda com uma cautela que dispensa a velocidade, a pressa. E as pétalas, junto com o gelo derretido, agora líquido, desenham um tapete no chão, vão desenhando. Versos de e. e. cummings: “me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre / (tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa.
A artista, com seu gesto, parece enfatizar mesmo um duplo movimento: da mesma forma que procura conservar a vida dessas pétalas, devolver suas cores, seu gesto aponta também para a impossibilidade dessa permanência. Depois de algum tempo no chão, a água seca, e as pétalas perdem seu ânimo, murcham aos poucos, escurecem. E um círculo se estabelece, e fecha: do desfalecimento à revelação e a um novo desfalecimento. O que era proteção, agora é desamparo. Nesse sentido, o calor é um elemento importante e definitivo no processo. Como o verão, estação que sucede a primavera, e que a devora, o calor, aqui, desmancha a pedra de gelo e seca as pétalas, levando o objeto ao desaparecimento definitivo. Depois de alguns dias em exposição, o objeto vira sujeira, somente, e o que resta é o calor.
O processo a que o objeto é submetido passa, precisamente, pela idéia de prolongamento, e realização de uma vibração que necessita do tempo. A estação é recuperada, dessa forma, não somente pelas flores, mas também pelo movimento do objeto, numa permanente renovação: a procura das flores, sua proteção no gelo, uma nova revelação, seu desaparecimento. Agora há invisibilidade.
Pois é mesmo invisível que o objeto termina, ou não termina. Acabado o processo, a primavera, não há mais nada material no espaço. Há somente na imaginação, e na memória de quem se deixou afetar. Alberto Caeiro: (..) Mas a Primavera nem sequer é uma cousa: / É uma maneira de dizer / Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes / Há novas flores, novas folhas verdes / Há outras dias suaves / Nada torna, nada se repete (…).; Então a estação se renova, numa outra “Primavera”;, porque a primavera, no mais, é somente isso: uma maneira de dizer.